"-Sempre estas reticências, nunca um ponto final. Tudo foi longe demais, tudo saiu de controle, tudo ficou fora de lugar. Não é como se apenas uma picada não fosse resolver tudo, mas a consciência do ato covarde me impede de fazer a mesma coisa de novo. As palavras abandonaram-me, me deixaram nesses delírios enlouquecedores, com esses sussurros gritantes que me deixam surdo.
-Como é?
-Como se cortar para ver o sangue escorrer, como beijar de olhos abertos, como roubar alguém poderoso. Sentir adrenalina o tempo todo, sentir o sangue pulsar, o coração estar vivo, os olhos lacrimejarem. Uma página de um livro ainda em branco, que é escrita e apagada, para começar tudo de novo.
Curve-se para a morte, venha morrer.
- O que mais?
- Sempre a neura, sempre a abstinência, sempre querendo mais. Um viciado em dor, em sentir carne queimar, sangue escorrer. Não, isso não é uma confissão, um ato de desabafo, uma tentativa de obter perdão. Eu escolhi viver assim, menina, eu fui meu Deus no meio de todo esse inferno. Eu, e só eu, fui corajoso para fazer o que todos tinham vontade. Consegue ver as cicatrizes? Há muito que não uso roupas abertas, há muito que não saio à luz do dia.
- Você tinha medo?
- De morrer? De jeito nenhum. Todos os caminhos que escolhi quase me levaram à morte, e nunca pensei nela propriamente. Eu gostava de sentir ela bem perto, e de escapar, como um gatuno esperto que sabe o que faz. E realmente sabia, não? Hoje estou aqui, vivo, para contar-te esta anedota! Mas deixe-me alertá-la: são histórias antigas, histórias de um velho que há muito esqueceu o que era viver. Histórias de quem sentiu o coração bater por anos e anos, mas que agora não é nada mais do que uma carcaça, um corpo sendo consumido pelo tempo. Sempre vivi à beira do penhasco, sempre soube que era ali, entre a vida e morte, que tudo valia à pena. Nunca escondi o que eu sentia, nunca poupei gemidos de prazer, ódio, amor, paixão, nunca me poupei sequer de morrer. E continuo morrendo, dia após dia, enquanto forneço esse amor morto.
- E quando tudo isso acabar? Quando sua consciência te abandonar, acha mesmo que tudo vai ter valido a pena?
- Quando acabar? Ora minha cara, não seja cega. Já acabou! Enquando te conto uma história, outros estão lá fora, fazendo exatamente o que eu fazia há 50 anos atrás; Bem, suponho que vocês sejam os jovens agora."
Uma despedida.
A notícia de um suicídio. Em câmera lenta.
E para você, o que significa realmente viver?
Nenhum comentário:
Postar um comentário