terça-feira, 8 de novembro de 2011

Culpa

- Eu ainda não entendo porque você continua escrevendo nesse caderno estúpido.
   Carolina olhou para cima e visualizou sua amiga Marieta, olhando-a de um jeito desaprovador.
 - Eu não esperava que você entendesse.
 - Mas é sério, Carol. – Ela sentou-se na cadeira defronte. – Por que você ainda está escrevendo? O que você está escrevendo, aliás? E não me venha dizer que é para a aula; Não tivemos nenhum dever hoje.
 - Sei que não, e não pretendia dizer isso.
- E o que ia dizer então?
 - Eu... – Sentiu-se confusa. Deveria mentir? Parecia errado, mas ao mesmo tempo a única alternativa. – Deixa pra lá.
- Nem pensar!
 - Rápida como um gatilho, Marieta puxou o caderno e leu um monte de palavras soltas, abobalhada. Depois riu.
- Você precisa reaprender a formar frases.
- Obrigada. – Carolina puxou o caderno meio rabugenta, e o fechou. Fazia meses que não conseguia escrever mais do que essas palavras soltas, mas por não ter nada a escrever. Rabiscava todas as folhas que atravessavam seu caminho, mas não saia nada compreensível.
- Então, você vai ficar presa nesse quarto escuro a tarde toda ou vamos à praia?
- Hum... Na verdade, eu precisava ir a outro lugar hoje. Pode ser amanhã?
 Marieta a olhou um instante, balançou a cabeça positivamente, e após mais um olhar triste para a amiga, saiu do quarto. Carolina olhou a porta com remorso por um instante, depois levantou-se num pulo, foi ao armário e trocou de roupa. Colocou um tênis e saiu também.
 Não tinha intenção de ir a lugar nenhum, só não queria estar com ninguém. Mas, ultimamente vagava sozinha por tanto tempo que seus pés a levavam automaticamente a seus lugares favoritos, e algumas quadras depois ela parou em um parquinho depredado pelos garotos do bairro. Sentou-se no único balanço que ainda não estava quebrado, fechou os olhos por um instante e sentiu sua pele absorver o calor do sol. Poucos minutos depois, alguém entrou em sua frente e, pensando que Marieta a havia seguido, abriu os olhos meio irritada.
  Deparou com um homem alto, mas seu rosto estava escuro por causa do sol, e ela o olhou questionadora. Ele se abaixou, e ela pode olhar seu rosto.
  Era magro, absurdamente magro, olhinhos pequenos como fendas e sua boca era apenas um fino traço. Seu nariz era adunco, e sua pele era macilenta, como se não visse sol há muito tempo. Ele sorriu, mas foi um esgar assustador, e ela logo pôs-se de pé, analisando o melhor jeito de ficar o mais longe possível. Acenou levemente com a cabeça e começou a andar, mas o estranho, ainda abaixado, agarrou seu tornozelo.
- Ei! Não sei quem você é, amigo, mas também não faço questão de saber. – Virou e tentou dar outro passo, mas ele continuava segurando-a, e ela percebeu que os dois estavam sozinhos. Ficou mais amedrontada, e tentou fingir que estava com raiva. – Se importa? Eu estou tentando andar.
 Ele a soltou e se levantou, e ela ergueu a cabeça, o rosto rubro. Ele era vários centímetros mais alto do que ela, e agora que ele não estava mais contra o sol, percebeu que seus olhos eram de um azul muito elétrico.
- Lamento, querida, mas não posso deixá-la ir. Você é uma assassina. Agora, deve morrer também.
 Se antes estava amedrontada, agora ela estava apavorada. Como aquele estranho podia saber? Ele sequer parecia ser dali.
- Lamento, querido – Ela deu ênfase à palavra querido. – Mas você deve ter se confundido. Não sou assassina coisa nenhuma.
- Então, aquele túmulo no cemitério não é do seu irmão?
- Como você sabe quem é meu irmão?
- Apenas sei. – Ele deu um passo para frente, e ela recuou. – Sei que não foi sua culpa, sei que não quis, mas aconteceu. Você não tinha nenhum direito de tirar a vida dele. Eu honestamente lamento. Você viveria muito sabe. Teria três filhos. Mudaria de país. Seria uma grande médica.
 Carolina riu, embora não houvesse a menor graça na situação.
- Mais uma prova de que você está enganado, senhor. Nunca quis ser médica.
- Não queria, até ver o médico que tentou salvar a vida do seu irmão. Ficou sensibilizada com o trabalho dele. E ele quase conseguiu, não é? Se ele ainda estivesse de plantão aquela noite, poderia ter evitado aquela parada respiratória.
- Quem é você? O que quer?
- Eu já disse. Vim vingar seu irmão. Você não vai matar mais ninguém.
- Você não sabe de nada! Ele era um viciado! Tentou me matar quando eu não lhe dei dinheiro para mais uma picada! Eu só me defendi! E como sabe de tudo isso? Você é policial? É medico? Anda me vigiando?
- Um pouco dos três, creio. Mas isso não vem ao caso. Como já disse, sei que não foi sua intenção. Mas isso não diminui sua culpa.
- Olhe, - Carolina se sentiu cansada. Reviver aquilo doía, e muito. – como acha que me sinto por ter atirado nele? Era meu irmão, meu sangue! Não fiz nada a sangue frio!
 Ela gritava, e olhava suplicante por perdão, como se o homem pudesse salvá-la do horror que tinha dentro de si mesma.
- Você tinha escolha. – Sua voz, tão calma antes, emanava frieza agora, e certa raiva. Carolina encolheu-se ligeiramente. – Ele tinha mudado de opinião meio segundo antes de você retirar a arma dele. Quando percebeu o que estava fazendo, decidiu mudar, decidiu parar. Você não tinha o direito de tirar isso dele.
- Mudou de opinião, foi? E como é que você sabe?
- Chega de conversa. Não tenho tempo a perder.
O ataque foi rápido e preciso: Ela não viu o que a atingiu. Não viu, mas sentiu. Olhava diretamente nos olhos de seu misterioso assassino, mas ao olhar para baixo, viu sangue manchando sua camisa branca de botões, a faca ainda cravada em seu peito, quase como se fizesse parte de seu corpo. Automaticamente, colocou a mão sobre ela, e voltou a olhar o homem. Alto e atarracado, um sorriso ameaçava curvar sua fina boca novamente, e, de repente, ela se sentiu suja diante dele. O torpor começava lentamente a invadi-la, bem como pensamentos bizarros e fora do contexto apareciam em sua mente. Ia morrer, sabia que sim. Mas, ao contrário do esperado, sua ligeira vida não passava diante dos seus olhos. Tudo o que vivera e o que fizera levara-a até ali, e era só no momento em que pensava. Queria gritar para que ele acabasse logo com isso, mas ele parecia divertir-se, e ela num impulso estúpido, ficou calada, observando o momento, absorvendo cada detalhe da cena. Cada detalhe daquele rosto, daquele sorriso.
- Agora, minha querida, você será perdoada.
  Não tinha forças para ficar em pé, mas não conseguia deitar-se ou sequer ajoelhar-se, tampouco. A morte era realmente bela, de um modo triste. Não era obscuro, e de repente ela sentiu apenas vazio. Sorriu também, como um pedido de desculpas ao homem por sua força, e fechou os olhos sentindo a dor sumir e seu corpo ficar pesado, pesado demais.
 O homem virou-se, retomou seu caminho a passos vacilantes, e quando o coração de Carolina deu sua última batida, ele já estava longe dali.

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